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Filosofia Teologia

A pescadora de corações

A desconfiança sobre o comportamento da mulher bela torna-se natural com a personificação feminina dos meses do ano.

Nos séculos XVII e XVIII foram frequentes a compilação e a publicação de conceitos predicáveis agrupados por temas, um género de guia muito útil para a composição de sermões, no qual se identificam as melhores citações do texto da Bíblia e dos grandes filósofos da Antiguidade para justificar cada caso em particular. Em 1693, Frei Manuel dos Santos, da Ordem Terceira de São Francisco, escreveu a Politica predicavel, com os infalíveis ensinamentos cristãos sobre a forma justa da organização da sociedade, como o próprio autor elucidou no prólogo aos leitores:

Mal poderá satisfazer a comuns agrados, & conseguir o acertado fim de seus intentos a Politica humana, senão tiver por objecto a direcção espiritual, & por espelho as liçoens e preceitos da Divina. Mal satisfará também a sua obrigação o Escritor Eclesiastico, que tratando do governo temporal, deixa de lhe accommodar os exemplos da Sagrada Escritura, sentenças, & exposiçoens dos Santos Padres, tanto mais importantes ao valor do assumpto, quanto infalíveis na certeza da historia, & na verdade do que propõem e ensinão…

Mars. Les douze mois de l’Année. Henri Bonnart II, c. 1678-1700. © British Museum 1922,0410.145.

As considerações da filosofia política sobre a mulher, nesse período, radicavam numa preocupação fundamental: a beleza do corpo da mulher é um perigo porque é um convite à luxúria, um vício que pode levar à destruição da família e da sociedade. Mas desde que a mulher prossiga uma vida sábia e virtuosa, de preferência submissa, pode-se transformar numa poderosa aliada do homem, como explicou o teólogo franciscano, no mesmo ensaio, apoiando-se na lição do livro do Génesis:

Com tudo se a mulher he dotada de prudencia, prendas, & virtudes, he fiel companheira assim nas prosperidades, & bonanças, como trabalhos, perdas, & perigos, & por isso Deos a consignou ao homem, para lhe ajudar a sofrer os contrapesos da vida.

Por esses mesmos anos, as gravuras trazidas de França atualizavam a moda dos vestidos e adereços e as decorações pictóricas das casas nobres. O painel com a assinatura do pintor Gabriel del Barco, datado de 1697, proveniente do antigo Palácio dos Condes da Ponte, em Lisboa, atualmente em depósito no Museu Nacional do Azulejo, representa a figura feminina do mês de março, provavelmente parte de conjunto com a representação dos 12 meses do ano. Realizado a partir de uma gravura dos irmãos Bonnart, que utilizaram a homofonia entre as palavras em francês para pecador e pescador (pêcheur/pécheur) para criar a alegoria de uma jovem com um camaroeiro, acompanhada pelos versos: Tudo é magro nesta estação/ onde os jejuns nos mortificam/ E para sustento da nossa vida/ precisamos das verduras ou do peixe.

Com um tom menos incisivo do que o utilizado nos sermões e tratados, a suspeita sobre a beleza feminina, ataviada com elegantes vestidos, continuava presente, agora associada a uma ordem cronológica e regular dos meses, repetida desde o início dos tempos. Serão os corações incautos presos na rede do camaroeiro os pecados da bela jovem?

Março. Gabriel del Barco, 1697. © Museu Nacional do Azulejo.

Essa mesma caracterização dos perigos e atrativos da beleza sedutora de uma dama da corte, acompanhada por um jovem pajem negro, está presente nos versos duma outra gravura dos mesmos autores, utilizada pelo pintor Teotónio dos Santos nos painéis de azulejo do Santuário de Nossa Senhora da Esperança em Sátão, em Viseu: No ar nobre desta Senhora/ Vêem-se boas qualidades/ Se por ela um galante se incendeia/ Devemos culpar a sua beleza.

Dame de la cour. Recueil des modes de la cour de France. Nicolas Bonnart, c. 1678-1693. © Los Angeles County Museum of Art.
Dame de la cour. Recueil des modes de la cour de France. Nicolas Bonnart, c. 1678-1693. © Los Angeles County Museum of Art.

Essa preocupação com o corpo feminino se estendia ao vestuário, cuja função primordial, para os teólogos cristãos, era justamente a de cobrir e impedir a visão da beleza sedutora. Para os oradores dos púlpitos das igrejas, a reunião ambígua dos versos piedosos com a representação do luxo dos toucados e vestidos de seda não era um aviso suficiente. O padre jesuíta Luís Álvares, autor de Ceo de graça, inferno custoso, um opúsculo moralista publicado em Évora em 1693, avisava mesmo que, por imitação, o luxo da moda podia arrastar o universo masculino no caminho de perdição:

Muitos se esquecem da varonia, immitando a feminisse. Cortaram as barbas que authorizavam os homens; cobrem-se de cabeleiras postiças: tudo cheiros, tudo milindres.

Nos painéis de azulejos, contra a corrente de críticas, a nova moda afirmava-se cada vez mais, disfarçada pelo reproche moral.

BIBLIOGRAFIA ESSENCIAL

ÁLVARES, Luís. Ceo de graça, inferno custoso. Évora, Oficina da Universidade, 1692. Biblioteca Nacional Digital: https://purl.pt/14292.

ANJOS, Manuel dos. Politica predicavel, e doutrina moral do bom governo do mundo. Lisboa: Oficina de Miguel Deslandes, 1693. Biblioteca Nacional Digital: https://purl.pt/14153.

CARVALHO, Maria do Rosário Salema Cordeiro Correia de. A pintura do azulejo em Portugal [1675-1725]. Autorias e biografias, um novo paradigma. Tese de doutoramento. Lisboa: Universidade de Lisboa, 2012. http://hdl.handle.net/10451/6527.

Lisboa, Museu Nacional do Azulejo

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