Por volta de 1804, o abastado comerciante e armador António Pereira encomendou um conjunto de chinoiserie para a decoração da sua residência nas Janelas Verdes, em Lisboa.
Os painéis de azulejos feitos para a decoração dos canteiros de flores do terraço, engenhosamente localizados no topo dos armazéns, junto às margens do Tejo, destacam-se por replicar as imagens de uma embaixada enviada ao Reino da China, cujo relato, escrito pelo experiente secretário Johan Nieuhof, foi publicado pela primeira vez em holandês, em 1665. A obra teve um profundo impacto na Europa da época, levando à tradução imediata para francês (1665), latim (1668) e inglês (1669), em grande parte pelas ilustrações, baseadas em desenhos de viagens, também da mão de Nieuhof.

O conjunto de imagens, fortemente impregnado do espírito da curiosidade seiscentista, descreve a geografia, a economia, a cultura, bem como a fauna e a flora do Reino da China. Revelam o perfil das cidades, paisagens ribeirinhas e marinhas, o processo de fabricação da seda, a tipologia das diferentes embarcações e também aspectos menos comuns, como os trajes de grupo de atores ou o absoluto domínio do corpo dos yogues. Esse carácter amplo e diversificado tornou-o uma das principais fontes gráficas para a elaboração das chinoiseries, frequentemente utilizadas por outros artistas europeus.
Na obra do emissário holandês, o texto e o desenho bebem do mesmo espírito descritivo, como fica claro ao compararmos a imagem que representa o navio em forma de dragão utilizados nas comemorações do Ano Novo Chinês. Johan Nieuhof, encantado com a festa e seduzido pelos concertos com instrumentos inauditos, por desfiles e danças, por bebidas e doces, que, segundo seu depoimento, superavam qualquer uma das festas celebradas na Europa, escreveu:
Nós vimos no dito canal uma grande quantidade de estranhos navios, mas os mais raros e graciosos foram dois barcos, ou ”caracores”, que os chineses chamam Longschons por serem construídos em forma de serpente, ou de cobras, mas com tamanho acerto e ornamento que eu não creio que o barco oferecido por Sesóstris ao ídolo que ele honrava pudesse superá-lo. Os ventres destes “caracores” imitava muito bem os das cobras aquáticas: a popa também foi adornada com uma cabeleira de serpente artisticamente retorcida. Foi um prazer assistir aos malabarismos de uma criança pendurada na cauda da embarcação. Os três mastros estavam coroados com ídolos, assim como o da proa, onde se viam uma quantidade de patos presos que eram atormentados por um chinês. Na cauda havia estandartes, com bandeiras de seda e longas penas.
Muitas dessas imagens, como a vista dos portos, a margem do rio e as marinhas, os monumentos históricos e religiosos, aproximam-se das convenções para a representação de paisagens, apesar de não se conhecer a formação artística de Nieuhof.

A descoberta relativamente recente de um caderno de esboços originais do secretário da embaixada revela que seu primeiro editor, talvez colaborando com o próprio autor, acrescentou pequenas figuras em primeiro plano nas gravuras, seguindo as regras do uso de staffage na pintura de paisagem.
Também se considerou necessário aproximar as imagens do universo exótico “reconhecível”, de modo que foram acrescentadas palmeiras com cocos para reforçar a caracterização da flora tropical. A própria experiência de viagem de Nieuhof foi enriquecida por suas leituras, e a narrativa segue de perto as descrições dos jesuítas italianos, espanhóis e portugueses.

Por sua vez, passado mais de um século, o pintor de azulejos português não recorreu às gravuras “originais”, mas sim a versões que uma equipa de artistas, liderada por Charles-Nicolas Cochin, o jovem, fez para a Histoire Générale de Voyages, editada e traduzida em França pelo abade Antoine Prévost. O objetivo desta equipa de autores era criar, a partir de histórias de viagens terrestres e marítimas, uma enciclopédia geográfica e histórica de todas as nações. A reedição dos textos, estabelecida pela comparação entre as versões de vários autores, foi acompanhada por um novo programa de imagens, apoiado pela Academia Francesa, que incluiu a edição de novos mapas de todos os continentes e regiões do globo.

Com a publicação da obra de Prévost, as imagens de Nieuhof passam a fazer parte de uma segunda etapa, não mais ligada à origem da embaixada comercial da Companhia Holandesa das Índias Orientais, mas à compilação e à consolidação do conhecimento histórico e geográfico universal. Embora muitas dessas imagens tenham perdido o primeiro impacto da novidade, há um contraste marcante entre esse conjunto, que hoje poderia ser classificado como etnográfico, e a imagem de uma China civilizada, polida e aristocrática que justificou a presença da chinoiserie na arquitetura aristocrática setecentista. Mesmo com todas essas adaptações, é notável a diferença entre esse conjunto de painéis de azulejos e a representação estereotipada da chinoiserie dos móveis lacados e da faiança do século XVII, feita em Lisboa.
Os azulejos feitos para a mansão do comerciante e armador António Pereira, actualmente aplicados nos canteiros que ladeiam a entrada principal do Palácio do Sobralinho, em Vila Franca de Xira, são um dos melhores exemplos da forma peculiar como as imagens de países exóticos se adaptaram ao gosto dos encomendadores.

BIBLIOGRAFIA ESSENCIAL
CURVELO, Alexandra (ed.). O exótico nunca está em casa? A China na faiança e no azulejo portugueses (séculos XVII-XVIII)/ The exotic is never at home? The presence of China in the Portuguese faience and azulejo (17th-18th centuries). Lisboa: Museu Nacional do Azulejo, 2013. ISBN 978-972-776-455-6.
